Ocupar a área pública faz Brasília menos estratificada socialmente?
Em 09 de maio de 2017 por Carolina Nogueira
Uma das cidades com maior nível de desenvolvimento humano do Brasil, Brasília é também a cidade mais desigual do país. E isso não são só números: qualquer um de nós vive isso todos os dias. Quase sempre enfurnados em carros, convivemos pouco com as diferenças. Pra quem vive e trabalha no Plano Piloto, a sensação de viver numa bolha homogênea é ainda maior. Neste artigo bem doloroso, o professor Frederico Holanda explica que nada disso é por acaso.
Essa homogeneidade sempre nos incomodou – e, sempre que falamos da ocupação do espaço público, esteve presente uma inquietação com a construção, assim, de uma Brasília mais plural. De quatro anos pra cá, houve, de fato, uma maior ocupação dos espaços públicos em Brasília. Mas isso é suficiente pra começar a fazer uma cidade menos desigual?
A primeira Mesa Quadrada, realizada por nós em conjunto com o Experimente Brasília e o Brasília Shopping, começou direto ao ponto – com Rogério Barba, ex-morador de rua, e sua voz grossa ecoando no sistema de som do shopping:
“Pra mim, é muito simbólico estar aqui. Eu dormia na frente da Globo, mexia no lixo do Brasília Shopping pra me alimentar. Agora estou aqui dentro do shopping, sendo ouvido por vocês”.
Hoje Barba é responsável pela ação social da Traços, revista de cultura vendida por pessoas em situação de rua, que já retirou 50 pessoas dessa condição. Éramos quatro debatedores, além de um público consciente e envolvido, discutindo desigualdade social e ocupação do espaço público dentro de um shopping elegante, área privada e capitalista por excelência. Um contraste que só contribuiu para o debate.
A professora de urbanismo da UnB Gabriela Tenório contextualizou a origem da questão: “Brasília tem uma configuração urbana marcada por longas distâncias que separam as diferentes classes sociais. Se uma pessoa quiser se isolar aqui, ela consegue. Não existe aquilo que é natural nas outras cidades, em que a pessoa vai fazer coisas a pé e naturalmente cruza com pessoas muito diferentes dela. Aqui há alguns espaços pra isso, e o SCS é o mais propício”.
O Setor Comercial Sul apareceu muito na conversa por causa do Pedro Cariello, o terceiro dos debatedores. Ele é um dos músicos responsáveis pelo Do Trabalho Para o Samba, um samba de mesa que acontece no Churrasquinho Express, na quadra 5 do SCS, toda sexta final da tarde. Quando a gente começou a falar de como o samba ocupou aquele lugar, o Barba interveio: “Toda vez que eu ouço falar em ocupar, em revitalizar uma área da cidade, eu me preocupo. Ocupar como? E o que vão fazer com as pessoas que vivem lá? Vão tirar? Pra colocar onde? Porque é como se ali não tivesse ninguém, e isso não é verdade”.
O Pedro explicou que, no samba, a lógica é outra: “Há moradores de rua que cantam com a gente, tem outros que pedem o microfone pra fazer discurso, e é nosso papel garantir esse lugar de fala. Tem o Felipe, que mora lá, que escreve poesia. A gente ainda vai fazer um samba juntos. Acho que isso desmistifica muita coisa. A pessoa da classe média que vai lá todo dia e vê que nunca aconteceu nada de negativo, nenhum episódio de agressividade, isso quebra um preconceito”.
“Quando você vai seguidas vezes nesses espaços e passa a ver sempre pessoas diferentes de você convivendo ali, fazendo parte da mesma experiência que você, você começa a borrar esses limites tão estanques dessa diferença entre você e o outro”, explicou a Gabi.
Mas pra ela, isso só acontece no samba porque ele se tornou um lugar de ocupação continuada: os sambistas estão lá toda sexta-feira. “O número de eventos nos espaços públicos tem crescido muito, mas são eventos muito marcados pelo consumo – que, por isso mesmo, reproduzem a lógica da cidade e atraem um público igualmente estratificado socialmente. Quando você tem um evento em espaço público que seja marcado pela cultura, que as pessoas buscam pela música, como é o caso do samba do SCS, por exemplo, você passa a ter um público mais heterogêneo”.
Só que enquanto a gente estava falando em atrair um público mais heterogêneo pra convivência urbana, quem está na outra ponta mostra que a necessidade dessa turma passa por necessidades bem mais básicas e fundamentais.
“Pra população de rua, são iniciativas muito valiosas e que podem ser mais diretamente úteis dando alternativas de renda e de trabalho pra essas pessoas. Alguém vai fazer a limpeza daqueles locais, não vai? Alguém vai fazer a segurança dos carros. Por que não pode ser um morador de rua, que é ali daquele local?”, disse ele, ressaltando como essas populações têm conseguido se integrar num outro evento realizado no SCS, a Quinta Cultural.
Nesse mesmo espírito, Sérgio Nascimento, da Ceilândia, que estava na plateia, deixou clara a distância real que separa os diferentes públicos, as diferentes Brasílias: “tem um apartheid social aqui em Brasília muito mais sofisticado que o apartheid racial que existia na África do Sul. Lá, havia cercas para separar negros e brancos. Aqui a cerca é a ideia de que você é diferente e não pode conviver”, disse ele.
E desafiou: “Eu estou disposto a vir pro Plano participar de um evento em área pública. E você? Está disposta a ir na Ceilândia?”
É claro que essas perguntas não têm respostas simples. Nem a que a gente propôs, nem as que surgiram ao longo do debate. Mas assinei embaixo de uma das reflexões da Gabi ao final do encontro: O que eu ainda sinto falta é de um lugar público de convivência que não precise de um evento para acontecer. Um lugar de encontro, um lugar de ocupação cotidiana, mais espontânea, sem o esforço de um evento. Eu ainda espero por uma transformação mais duradoura”.
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fabiominghetti