Brasília perversa e irresignada

Em 08 de março de 2019 por Daniele Lessa

O escritor John Banville, no seu livro O mar, escreveu uma fala (aqui traduzida na edição publicada no Brasil) para o protagonista que atravessava uma crise profunda: “o sol para mim é o olho gordo do mundo que me observa com deleite enquanto me contorço de sofrimento”.

John Banville é irlandês. Porém a beleza da literatura é que ela compartilha as dores do mundo sem pudores geográficos. Essa frase poderia ser usada para os piores dias de sol inclemente no planalto central. Ou para situações em que as pessoas mostram livremente a sua brutalidade interior. Essa expressão – brutalidade interior – não é minha. Li de uma pessoa que não conheço e que me adicionou no Facebook depois que eu divulguei uma situação de aridez inclemente na convivência em um condomínio de Brasília.

Sou cadeirante e me mudei para um condomínio à beira do Lago Paranoá. Fica perto do Palácio do Jaburu, morada do vice-presidente, e do Palácio da Alvorada, onde vive o presidente. É um local caro. Palaciano. É um privilégio poder pagar para morar aqui. E escolhi o lugar justamente por ser muito acessível. Olhe só, ter uma deficiência física e morar em qualquer lugar do Brasil é um desafio. Cadeirantes não passam pelas portas dos banheiros. As calçadas não permitem uma visitinha à padaria. As construções antigas não são nada acessíveis ainda que a legislação tenha determinado há muito tempo que os ajustes devam ser feitos. Mas o Premier Residence, em Brasília, é uma lindeza de acessibilidade. No seu estacionamento murado tem 2 vagas muito bem sinalizadas para pessoas com deficiência. Aquelas vagas maiores, importantes para que cadeirantes tenham espaço para posicionar a cadeira ao lado do carro.

Mas a brutalidade interior, meus amigos, ela frequenta locais com acesso e sem acesso. E o síndico do condomínio resolveu colocá-la em prática quando me impediu, com ameaças de multa, de estacionar o carro nessas vagas. Ele argumentou que as vagas só poderiam ser usadas por 15 minutos, para embarque e desembarque, carga e descarga, para não prejudicar o direito dos demais moradores. A empresa HPlus Hotelaria, que gerencia o condomínio, apoiou essa determinação bizarra.

Fiz um relato extenso sobre essa novela aqui. Entrei na Justiça e obtive uma tutela antecipada para que eu, e qualquer pessoa com deficiência, possa parar naquelas vagas. E a empresa HPlus divulgou uma nota em que sugere que eu pedi uso exclusivo da vaga. Sim, a empresa optou por me culpar pela situação, confira aqui.

É aqui que voltamos ao sol como olho gordo do mundo, e aqui voltamos à brutalidade de uma cidade como Brasília. Nasci aqui. Agora me dou conta que essa maneira bruta de viver é natural para mim. Tenho um certo orgulho de atravessar a seca enquanto os turistas sufocam com a falta de umidade. Amo as árvores retorcidas que sobrevivem às queimadas. E aceitei como sendo mais ou menos normal que em Brasília os vizinhos, em sua maioria, não se cumprimentam.

Até que a aridez do lugar, enfim, se manifestou como brutalidade interior em uma situação bizarra que me faltam adjetivos para qualificar. Impedir uma pessoa com deficiência de estacionar o carro em uma vaga para pessoas com deficiência? Onde chegamos, Brasília?

Bom, eu cheguei à Justiça e cheguei também a um monte de amigos conhecidos e desconhecidos que ainda estão indignados em um país que nos desafia, TODOS OS DIAS, a questionar a brutalidade. Tudo isso forma o mosaico dessa cidade que reflete tragédias e afetos. Ao cumprimentar uma vizinha do Premier Residence, ela me deu os parabéns por ter procurado a Justiça. Me senti acolhida e agradeço. Nas conversas com o síndico e com a gerente do condomínio, eu não acreditava no que estava acontecendo. Quando a situação é muito absurda, a gente começa a se perguntar se não somos nós os errados. O apoio de outras pessoas é essencial para que a gente se recorde qual é a realidade.

O síndico zelador de vagas vazias de estacionamento me disse para levar minha irresignação ao foro adequado (sim, o cidadão é advogado). Pois é o que vamos fazer agora e depois. Sejamos irresignados, Brasília. Ser irresignada é o melhor adjetivo que já recebi.

     

  • Geórgia Moraes

    Dani Lessa, irresignada, estamos contigo!