O que é essa fronteira invisível que tornam tão separadas as realidades de quem vive no Plano Piloto e nas outras cidades? A gente é uma cidade higienizada? E se é, por que? Como se muda isso?
Há anos essas perguntas nos perseguem. Na verdade, há anos a gente tentava formular elas precisamente, sem medo, colocando todas essas letras nas frases, se olhando no espelho, na busca de encontrar quem pudesse nos ajudar a respondê-las.
Aconteceu. Na Feirinha do Quadrado a gente realizou dois debates importantes, justos, no tamanho certo das nossas inquietudes. Dá pra assistir no nosso YouTube mas a gente aqui quer relembrar as questões levantadas ali, nos dois dias de discussão. É um jeito de deixar anotada, registrada, a força do que aconteceu naqueles dois dias.
Hoje revi o primeiro debate, “Quem tem direito a Brasília?”, quando o professor José Geraldo de Sousa Junior, ex-reitor da UnB e ideólogo do Direito Achado na Rua, conversou com o pessoal do No Setor: a Luísa Porfírio e o Guilherme Black. O debate foi marcado por problemas de conexão do Black – que estava nesse território aberto e imprevisível que ele hoje habita, que é a rua. Cada vez que ele caía e voltava, que ele era interrompido pela vida real, isso reverberava na gente, no debate – era como se as questões que a gente estava ali discutindo estivessem o tempo todo atravessando, interferindo na experiência de estar ali, naquele debate virtual.
A gente já começou colocando em pauta as tensões que aconteceram no ano passado quando o GDF resolveu, a pretexto de “revitalizar” a região central de Brasília, forçar a retirada das pessoas que moram na rua, com o claro objetivo de valorização imobiliária.
Atualmente morando na rua, o Guilherme Black mandou a real logo no começo da sua fala: “O governo está cagando pra gente. Eles querem resolver o problema como se fossemos um rebanho, quando na verdade cada um tem sua particularidade. Cada pessoa precisa de uma atenção diferente.
Dizem que você é um marginal porque você não paga seus impostos. Como eu posso pagar meus impostos se a sociedade vira as costas pra mim? O governo não dá ferramentas pro povo ser feliz. Eu não vivo, eu sobrevivo.
Sem teto não tem como arrumar emprego. Quem é que vai dar emprego pra um morador de rua, que nem eu? O cara mora na rua ele não dorme bem, porque sempre tem barulho. Ele não se alimenta bem, tem a saúde debilitada. Como que faz a higiene pessoal? Imagina se você tem um restaurante e eu chego pra trabalhar com minhas unhas pretas?, você ia me dar emprego?
A verdade é que a sociedade fecha os olhos pra gente e toda vez que eu ouço alguém falar em fazer algo é em reintegrar a gente. Reintegrar onde, gente?, eu não sou alienígena, não”.
A Luísa Porfírio, do NoSetor, comentou a miopia da iniciativa do governo:
“O governo parte do princípio de que aquele lugar é um problema, quando na verdade aquele lugar é uma potência. É dos poucos, senão o único lugar em Brasília, onde você tem um grande tráfego de pessoas a pé, caminhando, e muito espaço livre, pra fazer muitas coisas por lá.
Daí a gente tem situações em que o governo vai lá, retira tudo das pessoas que moram lá: roupas, comidas, pertences, documentos. Retiraram a cidadania daquelas pessoas. O que a gente precisa ali é de uma revolução afetiva, de dentro pra fora.
Eles querem ver o SCS como um quintal de luxo e não uma cidade de fato. Lá tem o que todo centro de cidade tem: tem gente, e gente morando na rua. Acho que as pessoas têm dificuldade de lidar com a realidade. Mas a realidade que não se pode negar é que a rua não tem dono – a rua, o espaço público, é de todo mundo mesmo”.
A retirada de moradores do SCS – e dos ambulantes da rodoviária, também no ano passado – vai muito, muito além de uma iniciativa isolada. Ela é tão comum em Brasília que é quase um método, um procedimento. É higienizada e higienizante a relação que o poder público quer estabelecer com os espaços públicos da cidade, especialmente do Plano Piloto.
Por isso foi muito importante ouvir o ex-reitor da UnB, professor José Geraldo de Sousa Júnior. Ele leu no debate um texto do começo do século passado, escrito por Washington Luís, então governador de São Paulo, em que ele defendia a “revitalização” de uma região do centro da cidade pra construção de um parque. A partir do texto arcaico, quase centenário, que chamava as pessoas que moravam na rua de “a vasa da cidade, uma promiscuidade nojosa”, o professor anotou o que vemos repetidamente em Brasília:
“Olha aí a higienização, a segregação, o outro como não-sujeito, não-homem, não-pessoa. ‘Essa vasa imunda’ – é bem como Brasília coloca tudo o que não está dentro do discurso célebre de como a cidade nasce, entre a civitas e a urbe do Plano Diretor. Que, na linguagem dos executores da cidade, deveria representar a eficiência, a beleza, a monumentalidade, o bucólico – enquanto que o “resto” seria retirado desse lugar porque enfeia, porque empobrece, porque desmoraliza, porque desvaloriza. Assim se empurra para as periferias ou até os devolve pros seus estados de origem.
Na Vila Telebrasília, o pessoal resistiu. Eles resistiram com um discurso: sim, tem a civitas e a urbe do Projeto Piloto, mas Brasília também tem uma pólis. Eles lutaram contra a política de desocupação e criaram a cidade da Telebrasília, e colocaram uma placa: “aqui tem História”. Eles inscreveram na cidade não apenas a escala monumental, a escala bucólica, não apenas a cidade arquitetônica, mas a escala social.
Quero chamar a atenção para algumas distinções que estão na nossa língua: invasores, ocupantes. Os discursos não são ingênuos. Roland Barthes dizia que a língua é fascista e ela é, não por nos impor a censura, mas porque nos obriga a dizer as coisas de um determinado modo”.
Ele evocou claramente essas “fronteiras invisíveis” que sempre nos incomodaram na ocupação territorial da cidade:
“Todos são livres pra ir e vir mas há uma barreira invisível – que para nós parece uma fronteira abstrata como uma linha de Tordesilhas, mas que, para cada um desses cidadãos que não têm quem os represente, ela não é invisível, não. Ela tem punhos de lutador para quebrar as cabeças deles, para sufocar sua respiração”.
O professor evocou Brasília a uma missão de cidade-educadora:
“A cidade só será educadora quando reconhecer, desenvolver, exercitar, além de suas funções tradicionais – econômica, social, de prestação de serviço – também uma função educadora, cujo objetivo é a formação e desenvolvimento de todos os seus habitantes. Trazer isso pra uma lógica de inclusão e de solidariedade, e não uma lógica de consumo, de apropriação e de uso dessa cidade. Exercício político na cidade, transformando a cidade também numa pólis”.
É essa a Brasília em que a gente, do Quadrado e da Feirinha do Quadrado, acredita.
Fica por perto que logo logo a gente faz um apanhado do segundo debate: “Do século 20 ao século 21: como atualizar Brasília?”.