Texto – Carol & Dani
Assim que o Retrato Brasília foi lançado, nós duas nos enchemos de perguntas. Realizado pelo Correio Braziliense e pelo CCBB, com patrocínio de R$ 2,5 milhões do Banco do Brasil, o projeto foi anunciado com conceitos teóricos e superlativos.
“Projeto vai traçar a cartografia estética e comportamental dos jovens brasilienses”. “Uma pesquisa etnográfica e atitudinal dos jovens influenciadores”. ”Retrato Brasília inaugura nova era para a arte do DF”.
Tá, mas o que exatamente é isso? Uma pesquisa? Um evento? Um debate? Por que uma pesquisa que pretende decifrar a juventude brasiliense e a nova cena cultural da cidade é realizada por uma empresa paulistana? Por que, na festa de inauguração de um projeto chamado Retrato Brasília, a estrela da noite foi uma cantora de São Paulo? Um grande ponto de interrogação se desenhou na nossa frente.
Procuramos o CCBB e tivemos um longo papo com o responsável pelo projeto, Jackson Araújo, para poder explicar pra vocês bem aqui como funciona o Retrato Brasília. Mas confessamos que ainda saímos de lá sem entender exatamente como esse projeto milionário vai colaborar com a cena cultural efervescente que temos vivenciado na nossa cidade.
Conversando com os artistas e realizadores culturais que vocês estão acostumados a ver aqui pelo blog, descobrimos que não estávamos sozinhas. E hoje a gente resolveu convidar vocês para participar dessa discussão.
Paradoxo
O Bruno Bernardes, dono da Galeria Ponto, é um dos “influenciadores da arte” eleitos pelo Retrato Brasília (pra entender exatamente o que é isso, leia o resumo que fizemos sobre o projeto).
Conversando com a gente, ele foi direto ao paradoxo que nos incomodava desde o início: por um lado, a pesquisa enaltece a nova cena cultural de Brasília e busca entendê-la melhor. Por outro, quem conduz tudo isso e quem ministra palestras e workshops são profissionais que nunca viveram essa cena.
“Ora, se a proposta é fazer um mapa cultural de Brasília, por que precisamos comissionar cartógrafos de outra cidade?”, pergunta Bruno. “Acho fundamental o intercâmbio, mas não parece ser essa a proposta, e me pergunto se os proponentes do projeto não sabem que temos agentes culturais competentes em Brasília.”
Sem bairrismo – mas sem complexo de vira-latas –, a gente também se pergunta se o mais útil para entender como essa cena inovadora se constituiu, suas forças e carências, não seria realizar um debate mais aberto, em que esses nossos agentes culturais sejam os protagonistas e não apenas espectadores. “Tenho certeza que os painelistas trazidos de fora são de grande competência. Seria ótimo ter suas contribuições, mas em um momento de fazer análises comparativas, por exemplo”, acrescenta Bruno.
Movimento sem donos
Outro incômodo quem compartilhou com a gente foi o Miguel Galvão, um dos responsáveis pelo Picnik – evento citado pelos próprios organizadores do Retrato como referência nessa efervescência toda. Para ele, pinçar o rosto de alguns ”novos pioneiros” ou “influenciadores” é fazer uma triagem artificial de uma cena cultural espontânea, livre e mutante.
“Vejo com pesar insistirem num movimento de caras específicas, de pessoas importantes, de listas VIPs. Quando a cidade está finalmente transcendendo às históricas ‘panelas’, é um retrocesso eleger um ou outro rosto queridinho”, lamenta.
Miguel acredita que o esforço de mapear os “influenciadores” culturais da cidade é algo totalmente desconectado com a espontaneidade dos diferentes movimentos que vemos ganhar as ruas a cada final de semana.
“O legal disso tudo que estamos vivendo é justamente porque são ações tangíveis a qualquer um: os espaços públicos estão aí, há várias formas alternativas de financiar as ideias (crowdfunding, custeio rateado), basta atitude, criatividade, esforço e responsabilidade”, lembra ele.
Puro marketing?
Outra grande fonte de incômodo: na extensa entrevista feita com os “jovens inovadores”, há uma série de perguntas sobre assuntos muito caros aos dois realizadores do Retratos Brasília.
Primeiro, a entrevista inclui um bocado de perguntas sobre os hábitos de leitura, sobre como esses formadores de opinião se informam e como consomem a mídia. Questiona como se imagina que seja a mídia no futuro. Em seguida, várias perguntas sobre hábitos bancários. Como imaginam o Banco do Brasil no futuro, como investem seu dinheiro. (Pausa para os artistas e jovens empreendedores da cidade rirem e perguntarem: “que dinheiro?”)
Para o Miguel, do PicNik, embutir essas perguntas mercadológicas não seria um problema, “se o banco de dados coletado fosse compartilhado de forma integral com o movimento que a pesquisa pretende estimular”.
Questionado sobre isso, o diretor do Retrato Brasília, Jackson Araújo, respondeu que os dados da entrevista não serão divulgados na íntegra e ressaltou que nenhum entrevistado era obrigado a responder essas perguntas, se não quisesse. Para ele, as críticas ao caráter mercadológico da pesquisa são “puristas”: pensar que uma pesquisa como essa não incluiria dados de interesse comercial dos realizadores seria “ingenuidade”.
Do que a gente precisa
“A primeira festa ao ar livre que eu vi acontecendo no Brasil, sem ser uma rave, foi aqui em Brasília”, conta Jackson, ao lembrar da Mimosa no Brasília Palace Hotel. “Depois que eu comecei a ver isso acontecendo em São Paulo, no Rio de Janeiro.”
Jackson diz que sua meta maior é transformar o Retrato em referência de discussão. “O meu objetivo em todos os projetos que escrevo, independente de eles serem ligados a um shopping ou a um centro cultural, é fazer com que esse ponto de encontro se transforme em área de geração de conhecimento.”
A gente acha muito legal que o maior jornal e o mais importante centro cultural da cidade tenham se unido para perceber melhor esse nosso movimento que está desabrochando. Demonstra que eles estão atentos à força da nova cena cultural da cidade.
Achamos tão interessante que topamos ser entrevistadas na pesquisa. O que não nos impede de questionar sobre como isso, de fato, pode contribuir para Brasília. Esse movimento precisa ser retratado? É possível dar um nome, escolher influenciadores, selecionar projetos que mereçam destaque, numa cena tão aberta e mutante?
Como dar protagonismo para as pessoas que estão inventando esta cena cultural na cara e na coragem, dando seus primeiros passos na vida profissional? Será que, ao invés de debates teóricos, essa galera não ganharia mais com uma boa consultoria empresarial, pra colocar suas ideias pra frente?
Outra ideia vem do Miguel, do PicNik. “Sugiro inverter a lógica dos workshops: ao invés de gastar com palestrantes que vão capacitar apenas um seleto grupo de ‘novos pioneiros’, por que não estender a ação para um grupo maior, investindo no desenvolvimento de mais agentes interessados em produzir movimento e cultura na cidade?”
A gente também se pergunta se o Retrato vai abrir caminhos para esses caras inovadores apresentarem projetos culturais aos dois realizadores pesos-pesados – Correio e CCBB. Será que, além de uma materinha bacana com fotinha, dá pra ter acesso a um patrocínio?
Finalmente, o Bruno, da Galeria Ponto, lembra do papel de uma pesquisa como essa num momento em que tantos espaços culturais estão sucateados. Para ele, é um grande desafio para os realizadores do Retrato justificar a aplicação de R$ 2,5 milhões nesse cenário.
“Esse projeto tem de gerar benefícios muito sólidos para justificar o uso desse dinheiro. Do contrário, teria sido mais apropriado, em termos de interesse público, a recuperação e reativação do MAB e do centro Renato Russo, por exemplo”, diz ele.
E você, hein, o que você acha?
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